Entendo que vale a pena reflectir sobre as
questões do mercado e da solidariedade. Para isso vou procurar centrar-me sobre
a seguinte questão, o mercado pode ser solidário? Naturalmente que estas são
tão só algumas pistas não suficientemente elaboradas, que extravasam o tema em
análise e valem o que valem. Trata-se apenas de um simples contributo para que
outros se debrucem sobre o assunto, o aprofundem e reflictam sobre ele. E isto
porque partilho a opinião de que se deve teorizar sobre a nossa prática e levar
à prática essa teoria, numa relação constante.
Antes do mais, devo evidenciar a minha posição sobre aquilo a que se
convencionou chamar crise, uma vez que essa mesma crise está umbilicalmente
ligada aos “mercados” e aos apoios, mais ou menos solidários que, a propósito
da atenuação dos efeitos da dita crise, se desenvolvem a vários níveis e em
diversos locais.
A crise actual é, em minha opinião, constituída por várias crises.
Temos, por exemplo, a crise da dívida soberana na Europa, a mais badalada e,
entre nós, apelidada de “A Crise”, que tudo justifica, mesmo as maiores
malfeitorias sobre as populações. Ora essa crise da dívida soberana, isto é,
aquela que é assumida junto dos credores externos pelo Estado, é, antes do
mais, o resultado de uma outra crise, a económica. A esta acrescem as
assimetrias causadas pelo próprio formato e regras da União Europeia, desde a
sua criação e mais acentuadamente a partir de Tratado de Mastrich, que
aprofundou as gritantes desigualdades já à partida existentes entre os diversos
estados da União.
Concretizando, e de forma muito resumida, o projecto da União Europeia é
fundamentalmente um projecto que visa promover a união e o crescimento dos
capitais europeus, um projecto destinado a favorecer o desenvolvimento das
empresas da Europa comunitária, fundamentalmente das grandes e mais
modernizadas empresas, as quais se situam esmagadoramente nos estados mais
desenvolvidos e poderosos do continente.
Convém reforçar esta premissa, a finalidade da União Europeia, desde a
sua criação até hoje, é a criação de condições que possibilitem o
desenvolvimento e a reprodução do capitalismo europeu, embora esse “capitalismo
europeu” nunca tenha existido enquanto
tal e continue a não existir. O que
existe é o capitalismo dos diferentes países europeus, embora a livre
circulação de capitais tenha conduzido a uma internacionalização capitalista
europeia, e de todo o planeta, cada vez maior. Apesar deste panorama, as
grandes empresas internacionais que dominam os diversos sectores da economia,
continuam a sentir a necessidade do apoio do”seu” estado de origem, da matriz
que lhes fornece o indispensável suporte para levarem à prática as suas
respectivas actividades, fundadas no domínio e na exploração.
Quanto aquilo que diz respeito à melhoria das condições de vida das
populações, assim como a uma solução efectiva dos problemas de ordem ecológica,
migratória, de combate e anulação das assimetrias educacionais, culturais,
regionais e de toda ordem, só se torna atractiva se corresponder aos interesses
do capital. Tais melhorias, convém salientar, são custeadas através do erário
público, o que face à actual crise generalizada se torna cada vez mais difícil
de prosseguir, em virtude da redução da arrecadação de impostos por parte do
Estado. Isto porque as finanças públicas se ressentem do agravamento na arrecadação de impostos,
actualmente muito mais reduzido em consequência da menor actividade económica e
também como consequência das isenções
fiscais prodigalizadas ao capital e património, particularmente às grandes
empresas e fortunas. Recorde-se que durante o período de crescimento do
capitalismo na Europa, o capital não colocava entraves à aplicação de parte das
receitas fiscais em apoios sociais e de outra ordem, enquanto hoje, na actual
situação de penúria, agravada por eles próprios, os mesmos porta vozes do
capitalismo e os seus papagaios amestrados se afadigam em diatribes contra as
despesas de carácter social.
Por outro lado, a forma como foi concebida e organizada a União Europeia
e em particular a implementação essencialmente política do euro, teria
necessariamente de levar ao aproveitamento das oportunidades de concentração,
de livre circulação e de escala, por parte daqueles que tinham dimensão,
capacidades financeiras, tecnológicas, de infra-estruturas e de toda a ordem
para as aproveitarem, ou seja, as empresas e regiões mais poderosas e
capacitadas para recolher benefícios provenientes de uma moeda e espaço
económico único, enquanto que os restantes teriam fatalmente de acentuar a
dependência face aos mais poderosos e estagnarem ou mesmo regredirem. Este é o
corolário da organização social hierarquizada em que se fundamenta o sistema
capitalista. Por isso mesmo as regiões e estados onde se concentram as empresas
e sectores económicos de maior valor acrescentado e maior produtividade, dão
origem a regiões e estados com orçamentos mais equilibrados, beneficiando ainda
de uma fiscalidade de grau superior e mais eficiente comparativamente aos
estados mais débeis.
Devido à mesma ordem de razões, resulta também natural que aqueles
estados que não possuem semelhantes vantagens comparativas sigam as modas,
estilos e símbolos em uso nos países de capitalismo maduro, importando
equipamentos e toda a espécie de produtos e serviços considerados modernos e
mais conformes à afirmação de poder na organização hierárquica que preside a
esta sociedade de classes. Como consequência, os seus aparelhos produtivos
estiolam face à concorrência externa que apresenta produtos mais baratos e
atractivos, tanto tecnológica como simbolicamente. Assim vão acumulando
deficits comerciais e ficam na dependência do indispensável financiamento
obtido em bancos dos países excedentários, para conseguirem equilibrar as suas
contas externas. Esta dependência impõe-se e agrava-se, uma vez que a poupança
interna é reduzida e ainda por cima emigra para destinos mais atractivos e
lucrativos no exterior. As mais das vezes para paraísos fiscais, e ou para os
mesmo estados que beneficiam desta engrenagem de dependência, voltando por
vezes à origem, sob a forma de capitais externos com destino a empréstimos com
elevados juros cobrados ao estado de onde eram originários. O resultado destas
operações, é o acentuar do serviço da divida e da dependência financeira face
ao exterior.
Foi isto que aconteceu em Portugal, um país
integrado numa zona económica de moeda forte, no entanto dotado de mais baixa
produtividade face aos seus concorrentes e fiscalidade inapropriada, pois que
nestas áreas tal como na orçamental não há uniformidade na União, daí
resultando o agravamento da dependência, como é usual na selva económica, onde
os peixes grandes comem os peixes pequenos.
Mas este é um problema que já extravasou os países dependentes,
tornando-se um problema de difícil resolução para a própria União Europeia,
porque os enormes deficits acumulados pelos países dependentes do exterior,
como Portugal, não se limitam em envolvê-los na espiral da dívida. E isto
porque esses valores correspondentes aos deficits são potenciados pelas
sofisticadas manobras modernas de especulação do mercado financeiro, onde os
especuladores, representados sobretudo por bancos, fundos de investimento e de
pensões, ou operadores especuladores por eles financiados, procedem a inúmeras
operações de compra e venda no mercado secundário de títulos de dívida,
disseminando e multiplicando desta forma o seu valor original que atinge
valores gigantescos. Este é um resultado inevitável de semelhante multiplicação
da dívida, embora seja obscurecida por um mercado pouco transparente, que no
entanto não pode escamotear semelhante realidade, á qual terá de se acrescentar
um cenário idêntico originado com os seguros dessas operações de crédito, ou
CDS’s. Estamos deste modo perante um problema de muito difícil ou mesmo
impossível resolução, uma vez que os credores especuladores não têm capacidade
financeira para o resolver e os estados, aos quais recorrem sempre para suprir
as suas carência, também se encontram submersos em problemas da mesma ordem.
Perante semelhante panorama restam duas saídas possíveis, embora
meramente conjunturais. Um recurso a empréstimos junto de financiamentos com
origem em fundos exteriores da União, por parte dos estados e instituições
europeias, o que tem sido tentado sem grande êxito, nomeadamente junto da
excedentária China. Ou, numa tentativa desesperada, a emissão de papel moeda
muito para além da massa monetária necessária. Este é um caminho seguido pelos
EUA, a par do seu gigantesco endividamento externo, mas a altamente provável
inflação daí resultante, assim como o domínio da Alemanha na Europa, e o seu
receio de perder esse controlo da União com as consequências de semelhante
operação, alia-se ao receio de uma inflação galopante, o que tem levado a União
Europeia, com a Alemanha à cabeça, a recusar tal opção.
Hoje, perante a concorrência internacional em todas as áreas, que impõe
aos capitalistas, tanto europeus como
dos restantes continentes, a necessidade
de se concentrarem nos seus negócios de base e mais lucrativos, são abandonadas
quaisquer pretensões niveladoras social democratizantes que pudessem aflorar na
mente de alguns políticos, uma vez que na actual situação o objectivo essencial
dos estados é salvar o sistema e assegurar a sua sobrevivência. Por esse motivo
são abandonados quaisquer objectivos ligados às condições de vida das
populações, daquilo que antes propagandeavam como um factor da “paz social”. As
tarefas ligadas a esses objectivos são agora remetidas para a igreja e outras
instituições de caridade, apoiadas, em escala
crescente, pela estigmatização dos pobres e repressão policial, largamente acompanhada pela propaganda mais descarada,
geralmente alcunhada de comunicação social.
Acresce que o capitalismo enfrenta hoje uma série de desafios de vária
ordem.. E que não são apenas aqueles decorrentes da recomposição dos actores do
domínio e da exploração, com a emergência de novos centros de exploração na
Ásia, particularmente na China, mas também os resultantes do desenvolvimento dos meios de produção e
controlo automáticos, que extinguem cada vez mais milhões de postos de
trabalho, com o consequente crescimento de multidões cada vez maiores de
desempregados ou empregados a título precário.
A conjugação destes dois factores, ou seja, da produção automatizada
acompanhada pela deslocalização de imensas unidades de produção, tem levado ao
encerramento de inúmeras empresas na Europa e nos EUA, muitas das quais emigram
para essas zonas dotadas de atractivos custos de produção substancialmente mais
reduzidos. Estas deslocalizações são acompanhadas, repito, pela substituição em
massa de enormes quantidades de trabalho humano, trocado por máquinas cada vez
mais sofisticadas e dispendiosas, o que conduz o capital europeu, e
norte-americano, a uma nova e complicada situação. Ou seja, a de se depararem
cada vez mais com a redução das mais-valias provenientes da exploração do
trabalho humano, acompanhadas de custos crescentes com o equipamento moderno,
conduzindo às consequentes reduções das taxas de lucro em numerosos sectores.
Para atenuar isso mesmo, na Europa como nos EUA, o capital emigrou para
a especulação financeira da economia de casino, onde as operações mais
fantasiosas e os consequentes lucros se multiplicam. De tal forma que ainda
hoje, apesar do estoiro de há 3 anos atrás, as operações desta índole
representam anualmente 87 vezes mais do que a produção mundial (PIB mundial).
Mas, também aqui, depois do estoiro financeiro de há 3 anos, a situação
se tornou muito mais complicada e arriscada. No entanto, enquanto a especulação
financeira prossegue e os bancos e congéneres conseguem todo o apoio e benesses
dos estados, a estratégia do capital passou a privilegiar a apropriação de
parte do rendimento directo ou indirecto dos trabalhadores, que é
insistentemente reclamado e encaminhando para o capital. É esta a
principal função utilitária da crise
para benefício do capital e, a meu ver, o seu aspecto básico. Estamos perante
uma ofensiva destinada à redução da parte do rendimento directo e indirecto do
trabalho para beneficiar os lucros do capital. O empobrecimento de extensas
camadas das populações, constitui a principal crise, aquela que as populações
sentem e sofrem.
De certo modo pode afirmar-se que a questão de “A crise” trata-se de um
falso problema, um álibi utilizado através da cobertura do manto de fantasia
tecnocrático, apresentado como científico e inevitável e encoberto pela proveniência
na incensada e esfíngica economia, mas que na realidade encobre um ataque
sistemático ao rendimento dos trabalhadores. Trata-se, por isso mesmo,
principalmente de uma questão política, do domínio e da opressão exercido pelas
classes dominantes sobre as populações.
A crise constitui um magnífico pretexto
destinado a justificar a contra-revolução em curso, através da qual o capital,
apoiado pelos seus títeres da política profissional, não só se vai apropriando
de massas enormes de dinheiro, como justifica a sua acção (é por causa de “A
crise”, repetem massivamente) E, talvez ainda mais importante, deste modo o
capital vai moldando toda a sociedade aos seus interesses, incluindo parcelas
importantes da grande maioria, os explorados e oprimidos.
Perante semelhante ataque e as habituais medidas restritivas impostas
pelos credores usurários, que sistematicamente obrigam a cortes nas despesas
sociais, e nos salários, ao mesmo que aumentam os tempos de labor, os impostos
e os preços de bens e serviços essenciais, a consequente recessão instala-se e
o deliberado empobrecimento de largos milhões de pessoas torna-se inevitável.
Face à miséria crescente em Portugal, com tendência para se agravar cada
vez mais, qual a resposta por parte dos agentes de domínio e de exploração, do
estado, partidos, igreja e “missionários” das mais diversas estirpes? O
sacrifício necessário e a caridade! Caridade que sempre refulge quando a
justiça não constitui uma prioridade. E actualmente a justiça social constitui
um ódio de estimação do estado e capitalistas, diligentemente ampliada pelos
arautos engordados a peso de ouro da propaganda conexa.
Ora bem, uma pretensa solidariedade, caritativa, conventual, criadora de
dependências e potenciadora de submissão, constitui um poderoso instrumento de
todas as forças obscurantistas que nos atacam.
Se atendermos ao facto da solidariedade só ser real quando é praticada
entre iguais, porque as diferenças hierárquicas geram dependência e submissão,
talvez seja melhor, a utilização do termo economia alternativa, ao invés de
solidária.
Quanto à expressão “mercados” muito haveria para dizer. Também aqui me
limito ao que julgo essencial.
O mercado é apresentado em economia, como um espaço ideal onde os
compradores e vendedores se confrontam em igualdade de circunstância e sem
vantagens comparativas, estabelecendo entre eles um preço justo para a compra
do bem ou serviço. Acresce que este mercado perfeito terá de possuir a
transparência que permita a todos intervenientes conhecerem os diversos preços
em confronto, a sua formação e a sua qualidade, sendo acompanhado, este mercado
ideal, pela atomicidade dos actores, isto é, terão de ser muitos intervenientes
e de pequena escala. Naturalmente que nada disto se passa na vida real, por isso
se fala em mercado imperfeito. Mas este é de tal forma imperfeito, para não
dizer inexistente, que todos os sectores da economia são dominados por um
oligopólio de gigantescas empresas, gravitando à sua volta uma constelação de
pequenas empresas dependentes da respectiva empresa mãe. Quanto à dita
transparência, prima como sabemos, pela maior opacidade possível, pese embora a
tremenda propaganda destinada a distorcer a realidade que as grandes companhias
produzem para modelarem as mentes e desejos das populações com os atributos
mais ou menos ficcionados da sua imagem.
Para alem disto, julgo que a corriqueira utilização do termo “mercado”
para classificar os interesses
capitalistas dos diversos sectores, nomeadamente do financeiro, através de
expressões como “os mercados financeiros reagiram mal…”, fazem parte da
autêntica novílingua em vigor, que pretende escamotear as relações de
domínio inerentes a esta sociedade
de classes. Deste modo é possível manter no anonimato os interesses dos
capitalistas da finança e dos restantes sectores, remetendo toda a
responsabilidade dos acontecimentos desastrosos suportados pelo povo para uns
anónimos mercados, únicos responsáveis pelos desastrosos resultados que a
intocável economia nos reserva. E a compreensão dos desígnios dos tais mercados
só estará ao alcance dos especialistas, economistas e outros sacerdotes do
capital.
O mercado constitui afinal um conceito base da sociedade de classes em
que vivemos, que fundamenta e condiciona a opressão e exploração de que somos
vítimas. É um sustentáculo da compre e da venda, do negócio e do lucro, o bem
supremo desta organização social. É esse mercado, ao contrário daquilo que repete a
propaganda em vigor, referindo-se
ao mercado livre, que de livre
nada tem senão a liberdade de comprar e vender para os que têm dinheiro, que dá
forma à mercadoria, isto é, aquilo que se compra e se vende. E entre todas, a
mercadoria suprema, o dinheiro, que nesta organização social dá forma à vida,
ou melhor à imitação de vida em que nos encontramos mergulhados. Uma vida em
que o fetiche supremo, aquilo que tudo domina e obscurece as relações entre as
pessoas e todos os seus sentimentos, é o dinheiro, esse encobridor de relações
que esconde e falsamente substitui as interações humanas e do homem com a
natureza.
Nesta forma de organização social todos somos forçados a submeter-nos às
leis do fetiche dinheiro, a ele dedicamos as nossas vidas e por ele
trabalhamos, lutamos e morremos, porque nesta imitação de vida as relações
humanas são mediadas pelo dinheiro, não podemos viver sem ele.
Por tudo isto, sou levado a perguntar, se é possível um mercado
solidário? Em meu entender há aqui uma contradição de termos, se é mercado não
pode ser solidário. A menos que cada um destes termos esteja alterado. Isto é,
se nos referimos a algo onde não se pratica a compra e a venda mas sim a troca
e a partilha e onde o lucro deixou de ser o móbil do seu funcionamento. Nesse
caso não é um mercado.
E também, se a solidariedade não é mais um acto de apoio mútuo que se
pratica entre iguais, para passar a ser uma relação de caridade, de
dependência. Também aqui não se trata de solidariedade.
Daqui concluo que, se falamos de algo classificado como mercado no qual
impera a solidariedade e apoio mútuo, estamos em presença de uma coisa
diferente, de um não mercado baseado na solidariedade entre os seus
intervenientes.
Nesta perspectiva, talvez fosse preferível falarmos nestes casos de
Feira de Economia Alternativa, pois de alternativas à economia se trata, de criar
novas formas de relacionamento nas áreas de produção e consumo, que não sejam
baseadas no lucro, na exploração e no domínio do outro, mas sim na apoio mútuo
e na satisfação das necessidades de cada um e da sociedade.
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