terça-feira, 9 de abril de 2013

MERCADOS & SOLIDARIEDADE


Entendo que vale a pena reflectir sobre as questões do mercado e da solidariedade. Para isso vou procurar centrar-me sobre a seguinte questão, o mercado pode ser solidário? Naturalmente que estas são tão só algumas pistas não suficientemente elaboradas, que extravasam o tema em análise e valem o que valem. Trata-se apenas de um simples contributo para que outros se debrucem sobre o assunto, o aprofundem e reflictam sobre ele. E isto porque partilho a opinião de que se deve teorizar sobre a nossa prática e levar à prática essa teoria, numa relação constante.

Antes do mais, devo evidenciar a minha posição sobre aquilo a que se convencionou chamar crise, uma vez que essa mesma crise está umbilicalmente ligada aos “mercados” e aos apoios, mais ou menos solidários que, a propósito da atenuação dos efeitos da dita crise, se desenvolvem a vários níveis e em diversos locais.

A crise actual é, em minha opinião, constituída por várias crises. Temos, por exemplo, a crise da dívida soberana na Europa, a mais badalada e, entre nós, apelidada de “A Crise”, que tudo justifica, mesmo as maiores malfeitorias sobre as populações. Ora essa crise da dívida soberana, isto é, aquela que é assumida junto dos credores externos pelo Estado, é, antes do mais, o resultado de uma outra crise, a económica. A esta acrescem as assimetrias causadas pelo próprio formato e regras da União Europeia, desde a sua criação e mais acentuadamente a partir de Tratado de Mastrich, que aprofundou as gritantes desigualdades já à partida existentes entre os diversos estados da União.

Concretizando, e de forma muito resumida, o projecto da União Europeia é fundamentalmente um projecto que visa promover a união e o crescimento dos capitais europeus, um projecto destinado a favorecer o desenvolvimento das empresas da Europa comunitária, fundamentalmente das grandes e mais modernizadas empresas, as quais se situam esmagadoramente nos estados mais desenvolvidos e poderosos do continente.

Convém reforçar esta premissa, a finalidade da União Europeia, desde a sua criação até hoje, é a criação de condições que possibilitem o desenvolvimento e a reprodução do capitalismo europeu, embora esse “capitalismo europeu”  nunca tenha existido enquanto tal  e continue a não existir. O que existe é o capitalismo dos diferentes países europeus, embora a livre circulação de capitais tenha conduzido a uma internacionalização capitalista europeia, e de todo o planeta, cada vez maior. Apesar deste panorama, as grandes empresas internacionais que dominam os diversos sectores da economia, continuam a sentir a necessidade do apoio do”seu” estado de origem, da matriz que lhes fornece o indispensável suporte para levarem à prática as suas respectivas actividades, fundadas no domínio e na exploração.

Quanto aquilo que diz respeito à melhoria das condições de vida das populações, assim como a uma solução efectiva dos problemas de ordem ecológica, migratória, de combate e anulação das assimetrias educacionais, culturais, regionais e de toda ordem, só se torna atractiva se corresponder aos interesses do capital. Tais melhorias, convém salientar, são custeadas através do erário público, o que face à actual crise generalizada se torna cada vez mais difícil de prosseguir, em virtude da redução da arrecadação de impostos por parte do Estado. Isto porque as finanças públicas se ressentem do  agravamento na arrecadação de impostos, actualmente muito mais reduzido em consequência da menor actividade económica e também  como consequência das isenções fiscais prodigalizadas ao capital e património, particularmente às grandes empresas e fortunas. Recorde-se que durante o período de crescimento do capitalismo na Europa, o capital não colocava entraves à aplicação de parte das receitas fiscais em apoios sociais e de outra ordem, enquanto hoje, na actual situação de penúria, agravada por eles próprios, os mesmos porta vozes do capitalismo e os seus papagaios amestrados se afadigam em diatribes contra as despesas de carácter social.


Por outro lado, a forma como foi concebida e organizada a União Europeia e em particular a implementação essencialmente política do euro, teria necessariamente de levar ao aproveitamento das oportunidades de concentração, de livre circulação e de escala, por parte daqueles que tinham dimensão, capacidades financeiras, tecnológicas, de infra-estruturas e de toda a ordem para as aproveitarem, ou seja, as empresas e regiões mais poderosas e capacitadas para recolher benefícios provenientes de uma moeda e espaço económico único, enquanto que os restantes teriam fatalmente de acentuar a dependência face aos mais poderosos e estagnarem ou mesmo regredirem. Este é o corolário da organização social hierarquizada em que se fundamenta o sistema capitalista. Por isso mesmo as regiões e estados onde se concentram as empresas e sectores económicos de maior valor acrescentado e maior produtividade, dão origem a regiões e estados com orçamentos mais equilibrados, beneficiando ainda de uma fiscalidade de grau superior e mais eficiente comparativamente aos estados mais débeis. 


Devido à mesma ordem de razões, resulta também natural que aqueles estados que não possuem semelhantes vantagens comparativas sigam as modas, estilos e símbolos em uso nos países de capitalismo maduro, importando equipamentos e toda a espécie de produtos e serviços considerados modernos e mais conformes à afirmação de poder na organização hierárquica que preside a esta sociedade de classes. Como consequência, os seus aparelhos produtivos estiolam face à concorrência externa que apresenta produtos mais baratos e atractivos, tanto tecnológica como simbolicamente. Assim vão acumulando deficits comerciais e ficam na dependência do indispensável financiamento obtido em bancos dos países excedentários, para conseguirem equilibrar as suas contas externas. Esta dependência impõe-se e agrava-se, uma vez que a poupança interna é reduzida e ainda por cima emigra para destinos mais atractivos e lucrativos no exterior. As mais das vezes para paraísos fiscais, e ou para os mesmo estados que beneficiam desta engrenagem de dependência, voltando por vezes à origem, sob a forma de capitais externos com destino a empréstimos com elevados juros cobrados ao estado de onde eram originários. O resultado destas operações, é o acentuar do serviço da divida e da dependência financeira face ao exterior.

 Foi isto que aconteceu em Portugal, um país integrado numa zona económica de moeda forte, no entanto dotado de mais baixa produtividade face aos seus concorrentes e fiscalidade inapropriada, pois que nestas áreas tal como na orçamental não há uniformidade na União, daí resultando o agravamento da dependência, como é usual na selva económica, onde os peixes grandes comem os peixes pequenos.

Mas este é um problema que já extravasou os países dependentes, tornando-se um problema de difícil resolução para a própria União Europeia, porque os enormes deficits acumulados pelos países dependentes do exterior, como Portugal, não se limitam em envolvê-los na espiral da dívida. E isto porque esses valores correspondentes aos deficits são potenciados pelas sofisticadas manobras modernas de especulação do mercado financeiro, onde os especuladores, representados sobretudo por bancos, fundos de investimento e de pensões, ou operadores especuladores por eles financiados, procedem a inúmeras operações de compra e venda no mercado secundário de títulos de dívida, disseminando e multiplicando desta forma o seu valor original que atinge valores gigantescos. Este é um resultado inevitável de semelhante multiplicação da dívida, embora seja obscurecida por um mercado pouco transparente, que no entanto não pode escamotear semelhante realidade, á qual terá de se acrescentar um cenário idêntico originado com os seguros dessas operações de crédito, ou CDS’s. Estamos deste modo perante um problema de muito difícil ou mesmo impossível resolução, uma vez que os credores especuladores não têm capacidade financeira para o resolver e os estados, aos quais recorrem sempre para suprir as suas carência, também se encontram submersos em problemas da mesma ordem.

Perante semelhante panorama restam duas saídas possíveis, embora meramente conjunturais. Um recurso a empréstimos junto de financiamentos com origem em fundos exteriores da União, por parte dos estados e instituições europeias, o que tem sido tentado sem grande êxito, nomeadamente junto da excedentária China. Ou, numa tentativa desesperada, a emissão de papel moeda muito para além da massa monetária necessária. Este é um caminho seguido pelos EUA, a par do seu gigantesco endividamento externo, mas a altamente provável inflação daí resultante, assim como o domínio da Alemanha na Europa, e o seu receio de perder esse controlo da União com as consequências de semelhante operação, alia-se ao receio de uma inflação galopante, o que tem levado a União Europeia, com a Alemanha à cabeça, a recusar tal opção.

Hoje, perante a concorrência internacional em todas as áreas, que impõe aos    capitalistas, tanto europeus como dos  restantes continentes, a necessidade de se concentrarem nos seus negócios de base e mais lucrativos, são abandonadas quaisquer pretensões niveladoras social democratizantes que pudessem aflorar na mente de alguns políticos, uma vez que na actual situação o objectivo essencial dos estados é salvar o sistema e assegurar a sua sobrevivência. Por esse motivo são abandonados quaisquer objectivos ligados às condições de vida das populações, daquilo que antes propagandeavam como um factor da “paz social”. As tarefas ligadas a esses objectivos são agora remetidas para a igreja e outras instituições de caridade, apoiadas, em escala  crescente, pela estigmatização dos pobres e repressão policial,  largamente acompanhada pela propaganda mais descarada, geralmente alcunhada de comunicação social.

Acresce que o capitalismo enfrenta hoje uma série de desafios de vária ordem.. E que não são apenas aqueles decorrentes da recomposição dos actores do domínio e da exploração, com a emergência de novos centros de exploração na Ásia, particularmente na China, mas também os resultantes do  desenvolvimento dos meios de produção e controlo automáticos, que extinguem cada vez mais milhões de postos de trabalho, com o consequente crescimento de multidões cada vez maiores de desempregados ou empregados a título precário.

A conjugação destes dois factores, ou seja, da produção automatizada acompanhada pela deslocalização de imensas unidades de produção, tem levado ao encerramento de inúmeras empresas na Europa e nos EUA, muitas das quais emigram para essas zonas dotadas de atractivos custos de produção substancialmente mais reduzidos. Estas deslocalizações são acompanhadas, repito, pela substituição em massa de enormes quantidades de trabalho humano, trocado por máquinas cada vez mais sofisticadas e dispendiosas, o que conduz o capital europeu, e norte-americano, a uma nova e complicada situação. Ou seja, a de se depararem cada vez mais com a redução das mais-valias provenientes da exploração do trabalho humano, acompanhadas de custos crescentes com o equipamento moderno, conduzindo às consequentes reduções das taxas de lucro em numerosos sectores.

Para atenuar isso mesmo, na Europa como nos EUA, o capital emigrou para a especulação financeira da economia de casino, onde as operações mais fantasiosas e os consequentes lucros se multiplicam. De tal forma que ainda hoje, apesar do estoiro de há 3 anos atrás, as operações desta índole representam anualmente 87 vezes mais do que a produção mundial (PIB mundial).

Mas, também aqui, depois do estoiro financeiro de há 3 anos, a situação se tornou muito mais complicada e arriscada. No entanto, enquanto a especulação financeira prossegue e os bancos e congéneres conseguem todo o apoio e benesses dos estados, a estratégia do capital passou a privilegiar a apropriação de parte do rendimento directo ou indirecto dos trabalhadores, que é insistentemente reclamado e encaminhando para o capital. É esta a principal  função utilitária da crise para benefício do capital e, a meu ver, o seu aspecto básico. Estamos perante uma ofensiva destinada à redução da parte do rendimento directo e indirecto do trabalho para beneficiar os lucros do capital. O empobrecimento de extensas camadas das populações, constitui a principal crise, aquela que as populações sentem e sofrem.

De certo modo pode afirmar-se que a questão de “A crise” trata-se de um falso problema, um álibi utilizado através da cobertura do manto de fantasia tecnocrático, apresentado como científico e inevitável e encoberto pela proveniência na incensada e esfíngica economia, mas que na realidade encobre um ataque sistemático ao rendimento dos trabalhadores. Trata-se, por isso mesmo, principalmente de uma questão política, do domínio e da opressão exercido pelas classes dominantes sobre as populações.

 A crise constitui um magnífico pretexto destinado a justificar a contra-revolução em curso, através da qual o capital, apoiado pelos seus títeres da política profissional, não só se vai apropriando de massas enormes de dinheiro, como justifica a sua acção (é por causa de “A crise”, repetem massivamente) E, talvez ainda mais importante, deste modo o capital vai moldando toda a sociedade aos seus interesses, incluindo parcelas importantes da grande maioria, os explorados e oprimidos.

Perante semelhante ataque e as habituais medidas restritivas impostas pelos credores usurários, que sistematicamente obrigam a cortes nas despesas sociais, e nos salários, ao mesmo que aumentam os tempos de labor, os impostos e os preços de bens e serviços essenciais, a consequente recessão instala-se e o deliberado empobrecimento de largos milhões de pessoas torna-se inevitável.

Face à miséria crescente em Portugal, com tendência para se agravar cada vez mais, qual a resposta por parte dos agentes de domínio e de exploração, do estado, partidos, igreja e “missionários” das mais diversas estirpes? O sacrifício necessário e a caridade! Caridade que sempre refulge quando a justiça não constitui uma prioridade. E actualmente a justiça social constitui um ódio de estimação do estado e capitalistas, diligentemente ampliada pelos arautos engordados a peso de ouro da propaganda conexa.  

Ora bem, uma pretensa solidariedade, caritativa, conventual, criadora de dependências e potenciadora de submissão, constitui um poderoso instrumento de todas as forças obscurantistas que nos atacam.

Se atendermos ao facto da solidariedade só ser real quando é praticada entre iguais, porque as diferenças hierárquicas geram dependência e submissão, talvez seja melhor, a utilização do termo economia alternativa, ao invés de solidária.

Quanto à expressão “mercados” muito haveria para dizer. Também aqui me limito ao que julgo essencial.

O mercado é apresentado em economia, como um espaço ideal onde os compradores e vendedores se confrontam em igualdade de circunstância e sem vantagens comparativas, estabelecendo entre eles um preço justo para a compra do bem ou serviço. Acresce que este mercado perfeito terá de possuir a transparência que permita a todos intervenientes conhecerem os diversos preços em confronto, a sua formação e a sua qualidade, sendo acompanhado, este mercado ideal, pela atomicidade dos actores, isto é, terão de ser muitos intervenientes e de pequena escala. Naturalmente que nada disto se passa na vida real, por isso se fala em mercado imperfeito. Mas este é de tal forma imperfeito, para não dizer inexistente, que todos os sectores da economia são dominados por um oligopólio de gigantescas empresas, gravitando à sua volta uma constelação de pequenas empresas dependentes da respectiva empresa mãe. Quanto à dita transparência, prima como sabemos, pela maior opacidade possível, pese embora a tremenda propaganda destinada a distorcer a realidade que as grandes companhias produzem para modelarem as mentes e desejos das populações com os atributos mais ou menos ficcionados da sua imagem.

Para alem disto, julgo que a corriqueira utilização do termo “mercado” para   classificar os interesses capitalistas dos diversos sectores, nomeadamente do financeiro, através de expressões como “os mercados financeiros reagiram mal…”, fazem parte da autêntica novílingua em vigor, que pretende escamotear as relações de domínio  inerentes a esta  sociedade  de classes. Deste modo é possível manter no anonimato os interesses dos capitalistas da finança e dos restantes sectores, remetendo toda a responsabilidade dos acontecimentos desastrosos suportados pelo povo para uns anónimos mercados, únicos responsáveis pelos desastrosos resultados que a intocável economia nos reserva. E a compreensão dos desígnios dos tais mercados só estará ao alcance dos especialistas, economistas e outros sacerdotes do capital.

O mercado constitui afinal um conceito base da sociedade de classes em que vivemos, que fundamenta e condiciona a opressão e exploração de que somos vítimas. É um sustentáculo da compre e da venda, do negócio e do lucro, o bem supremo desta organização social. É esse mercado, ao contrário daquilo  que repete a  propaganda em vigor, referindo-se  ao mercado livre, que  de livre nada tem senão a liberdade de comprar e vender para os que têm dinheiro, que dá forma à mercadoria, isto é, aquilo que se compra e se vende. E entre todas, a mercadoria suprema, o dinheiro, que nesta organização social dá forma à vida, ou melhor à imitação de vida em que nos encontramos mergulhados. Uma vida em que o fetiche supremo, aquilo que tudo domina e obscurece as relações entre as pessoas e todos os seus sentimentos, é o dinheiro, esse encobridor de relações que esconde e falsamente substitui as interações humanas e do homem com a natureza.

Nesta forma de organização social todos somos forçados a submeter-nos às leis do fetiche dinheiro, a ele dedicamos as nossas vidas e por ele trabalhamos, lutamos e morremos, porque nesta imitação de vida as relações humanas são mediadas pelo dinheiro, não podemos viver sem ele.

Por tudo isto, sou levado a perguntar, se é possível um mercado solidário? Em meu entender há aqui uma contradição de termos, se é mercado não pode ser solidário. A menos que cada um destes termos esteja alterado. Isto é, se nos referimos a algo onde não se pratica a compra e a venda mas sim a troca e a partilha e onde o lucro deixou de ser o móbil do seu funcionamento. Nesse caso não é um mercado.

E também, se a solidariedade não é mais um acto de apoio mútuo que se pratica entre iguais, para passar a ser uma relação de caridade, de dependência. Também aqui não se trata de solidariedade.

Daqui concluo que, se falamos de algo classificado como mercado no qual impera a solidariedade e apoio mútuo, estamos em presença de uma coisa diferente, de um não mercado baseado na solidariedade entre os seus intervenientes.

Nesta perspectiva, talvez fosse preferível falarmos nestes casos de Feira de Economia Alternativa, pois de alternativas à economia se trata, de criar novas formas de relacionamento nas áreas de produção e consumo, que não sejam baseadas no lucro, na exploração e no domínio do outro, mas sim na apoio mútuo e na satisfação das necessidades de cada um e da sociedade.

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