LISBOA E OS
PÂNDEGOS DA CONTRADANÇA DO PODER
Calcorreio sem pressas as ruas
do centro da minha cidade, e o afecto que há muito nos une é acompanhado pela
mágoa perante a decadência que, desde há largas décadas, corrói a nossa
celebrada urbe de Olissipo. Sentimento agora acompanhado por uma mescla de
aflição e agonia, submerso sob os efeitos da pândega provocação dos aspirantes
a caciques da capital.
Aproximam-se as eleições
autárquicas, a caça ao voto e o
chamamento à ingenuidade do “amigo eleitor” proliferam. Abundam os cartazes de
todos os tamanhos, ricamente coloreados, onde desbocadamente são alardeadas as
carantonhas mais desvairadas dos
diferentes herodes em concorrência e as sentenças mais estrambólicas, mas todas
elas evidenciando algo em comum, não dizem nada!
Percorro a planura das ruas da
Boavista e de S. Paulo, onde a flagrante ruína da maioria das construções torna
evidente que as guerras urbanas não
aconteceram apenas em cidades vítimas de conflitos bélicos, como Zagreb, Belgrado ou Beirute. Também as ruínas de Lisboa e o
omnipresente naufrágio citadino que nos
cerca, patenteiam o conflito que os
capitalistas e os seus aliados da política travam contra os moradores da
cidade. As rendas antigas são baixas, aumentem-se! Eis a solução desta gente e
dos seus amestrados tri-doutores. Enquanto isso, os prédios são votados ao
abandono na esperança vã de uma retoma
que valorize a idolatrada propriedade privada dos terrenos.
E, com esses imóveis, são abandonados quem neles procura sobreviver, por
entre quedas de paredes e de escadas, de
ratos e soterramentos.
Por fim, chego ao Cais do Sodré,
aí aguarda-me uma praga de cartazes eleitorais, a par de uma nuvem de
ensurdecedores veículos que, qual zangões furibundos, procuram ultrapassar-se
uns aos outros, perante o pavor dos aflitos peões e o ar carrancudo dos
chamados agentes da ordem, neste caso, agentes de estridentes silvos geradores
de desordem sonora.
Mesmo à minha frente, perfila-se
no seu cartaz, exibindo um forçado sorriso de fancaria, um sujeito gordo e
careca que, enroupado no tradicional fato e gravata, fardamento oficial dos
políticos de profissão, ameaça, “Com os
dois pés em Lisboa”. É um tal Seara que, receio bem, pretenda espezinhar os
lisboetas, com os dois pés, só um, ou mesmo a quatro patas. Dissimulados a um
canto, meio envergonhados, deparo com os símbolos partidários deste sujeito, do
PSD/CDS que, perante aquilo que esta gente chama o desgaste do poder, ou seja,
o bem visível rol de promessas não
cumpridas inerente a todos os governantes, lança-nos um olhar de carneiro mal
morto, enquanto se afadiga no peditório eleitoral.
Logo ao lado, mira-me um outro
sujeito. Também este enverga a farpela obrigatória, mas faz gala na sua profusa trunfa, alva como
a neve, e na tez bronzeada. Ostenta um
sorriso pisa-mansinho, a exemplo do seu colega do lado, e a sua fisionomia de
bom rapaz-trabalhador, encimada por um olhar pouco transparente, onde o que não
parece é e o que é não parece, deixam
perceber um apetite mal contido. Talvez o de um Obama à moda da Madragoa.
Trata-se do Costa, o actual
manda-chuva camarário que, carregando uma longa experiência de manhas
políticas, nos surge mais adiante num outro cartaz publicitário. Aqui,
acompanhado de uma bem nutrida jovem, envergando um fatinho à marujo,
assegura-nos que “juntos fazemos Lisboa”, deixando no ar uma enorme dúvida.
Quem serão estes “nós”? Ele e a sua colega de partido, disponíveis, por exemplo,
a abrir valas na Avenida das Naus, em remodelação ali ao lado? Ou ele e os
restantes lisboetas, empunhando gigantescas vassouras, indispensáveis à limpeza
de toda a imundice politiqueira e prestamista que emporcalha a nossa cidade? Ou
ainda, toda a edilidade lisboeta,
disponível para almofadar o percurso dos especuladores e demagogos que nos
atordoam? Com quem convida o Costa a juntar-mo-nos?
Embebido nestas reflexões
prossigo o meu percurso, esperançado em encontrar por fim alguma clareza nas
proclamações dos candidatos a caciques da cidade, e eis que ali ao lado deparo
com um cartaz em formato mais reduzido, da CDU. Como quem diz CDU, diz PCP e os
seus companheiros de jornada eleitoral, pergunto-me, será que, finalmente, através do partido
comunista, vou encontrar um apelo, não direi revolucionário, mas ao menos com
algum conteúdo explicito?
Nada disso, a moda de
substituição dos seus velhos slogans, tipo “Os eternos valores de Abril”, ou
talvez mesmo, “Em frente pela Reforma Agrária”, também chegou a estas a bandas.
O que encontro é um desconhecido sujeito de ar simpático e asséptico que nos
augura “Lisboa, cidade para todos”, em que o máximo da contestação que nos
oferece, é o facto de ter despido o casaco, acção bem tolerável pelo
cinzentismo dominante, face ao calor estival que se faz sentir. De facto,
pôs-se em mangas de camisa para proferir uma frase absolutamente inócua, merecedora de um lugar de honra na
classificação dos maiores lugares comuns da nossa língua, a par de
infantilidades tipo, “O mar para todos
os peixes”.
Prossigo o meu percurso,
embebido em pensamentos pouco abonatórios face aos profissionais da política e
quando dirijo o olhar para o outro lado da Praça, deparo com um enorme cartaz
publicitário do Bloco (Berloque ?) de Esquerda, que proclama em letras
garrafais “Tudo o que foi roubado tem de ser devolvido”.
Perante este alvedrio
eleitoralista, logo uma questão me ocorre. A que roubos se referem estes
patuscos? Será aos da exploração, de que todos os assalariados somos vítimas?
Ou àqueles conduzidos pelos vários chefes de todos os calibres que, das mais
badaladas às mais obscuras repartições do estado, nos obrigam a labutar para lá
do horário de trabalho? Ou será ainda, que se referem à venda a preço de saldo
de empresas estatais aos cúmplices da
mesma pandilha? Mas, pergunto eu, essas empresas eram propriedade do povo
português e são os seus trabalhadores quem decide as suas estratégias e gere o
chamado sector empresarial do estado?
Quantas perguntas, quanta
ausência de respostas. Que também não encontro num outro painel publicitário,
cujo slogan bloquista decreta,“Queremos Lisboa viva, habitada, solidária”.
Óptimo, dizemos todos, incluindo o varredor municipal e o banqueiro, tal como
não deixarão de apoiar qualquer outra expressão igualmente vazia de conteúdo.
Como, por exemplo, “Queremos que todos os portugueses tenham uma casa com
piscina e passem férias de dois meses num destino à sua escolha”. Pela minha
parte, apoiaria inteiramente, e, já agora, formulo um outro desejo, “Queremos
que os simuladores da política se retirem para uma actividade decente”.
Enfim, encontro-me completamente
elucidado sobre as insultuosas habilidades destes farsantes mas, ao afastar-me
rumo a um destino mais salubre, ainda deparo com um derradeiro reclame, o do
MAS, que um politólogo (ou palitólogo?) de ocasião, me esclareceu tratar-se do
Movimento Alternativa Socialista, um bando de lunáticos que, alumiados pelo
pensamento de Trotsky, abandonou o Bloco de Esquerda em busca de alguns simplórios
para os converter aos desumanos sacrifícios, do seu único e sacrossanto chefe
burocrata reconhecido, o estatista que, entre outras crueldades, teorizou e
transformou os sindicatos em meras correias de transmissão do seu partido
bolchevique e comandou o assassínio a tiro e canhonazo dos camponeses
revolucionários de Makhno, na Ucrânia, e dos operários e marinheiros da cidade
revolucionária de Kronstad.
Pois bem, esta anacrónica
caterva também resolveu fazer prova de vida neste penoso carnaval eleitoral. “O
euro afunda o país. Referendo já”, exigem, numa caricata tentativa para
extorquir dividendos do empobrecimento e desencanto popular, mas sem que um
único desarrincanço, uma simples ideia consistente, alumie tão vetustas mentes.
Apenas lhes ocorreu, como se a história fosse possível de rebobinar, um
regresso a um passado de há 40 anos
atrás, ou seja, pedir uma repetição do golpe militar contra a ditadura. Por
isso papagueiam, “Faz falta um novo 25 de Abril”. Enfim, com contestatários
destes, bem podem os banqueiros e
políticos dormir descansados.
Foi já junto às margens, por
agora tranquilas do Tejo, debruçado sobre o parapeito de pedra que me separa
das suas serenas águas estivais, que concluí, com o mar da Palha ao fundo e o
apito de um cacilheiro que se aproxima do cais, que as eleições à portuguesa
além de sensaboronas e repetitivas, dão-nos uma outra dimensão da crise com que
os “donos de Portugal” diariamente nos ameaçam. A da crise de valores e de
imaginação.
Perante a acefalia reinante
entre os mais diversos senhoritos da política, nada melhor do que não fazer ondas. Nem esquerda, nem direita,
nem sequer centro, o melhor, consideram, é falar a uma só voz e ninguém dizer
nada. E assim, temos uma cáfila de gente do mando que ignora completamente o povo que se arroga
querer representar. Nem sequer aparecem as costumeiras promessas, agora
ausentes de todos os cardápios, tal como as picarescas questiúnculas entre a
direita e a esquerda. As ideologias fugiram para parte incerta, com todos os
candidatos igualizados pelo mesmo nível,
o mais baixo da escala.
É a gente deste calibre que a
idiotice eleitoral vai entregar os destinos das suas cidades, vilas e
freguesias, como se um rebanho de ovelhas pudesse optar entre os candidatos a
pastor mudos e paralíticos. Mas, dotados de um poderoso auxiliar, o cão. Tal
como os “nossos” políticos, bem servidos pelo cão, polícia ou à paisana.
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